Caneta sem tinta
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Hidrogenio verde e o combustivel do futuro

Caneta sem tinta

18/05/2018 7:50

Tinha o sangue azul, mas instável, às vezes nobre, às vezes vulgar, dependendo de quem a usasse. Uma caneta esferográfica azul. De tanto escrever, ficou sem tinta. É da marca BIC, aquela com o furinho no corpo, em que se encaixa a ponta da lapiseira e se faz uma hélice. "Isso é besteira", diria enquanto tinha tinta. Naquela época, era dada a pensamentos profundos, sérios. Nada de frivolidades. Mas, agora, que está sem tinta, sente-se mais leve, mais diáfana -- transparente até. Para não ficar sem ter o que fazer, começou a pensar. Acredita que isso é uma forma de escrever em silêncio, de escrever o silêncio. Não precisa mais ser empunhada, não precisa ser mais esfregada, tratada com descaso. Não precisa mais ser meio. Ela é fim, finalmente. Fim em si. Sem cobrança, sem tensão, sem falta de criatividade -- não dela, mas do escriba. Ela está plena, mesmo vazia. Consegue entender o que não entendia, porque lhe faltava reflexão. Tudo era ação, tudo era para ontem. Chegava determinado momento em que nem sabia mais o que fazia, agia no automático. Começou a refletir mais quando passou da meia vida, quando mais da metade de seu sangue-mente-tripas-coração-e-o-escambau já tinha escorrido papel afora. Sabia que não demoraria muito para parar de ser usada. Que alívio, que angústia. Teria de se adaptar a uma nova vida, a um novo modo de ver a vida, não mais de cara para o branco, para o nada, para o incriado. Não seria mais colocada na boca, nem no nariz, nem na orelha. Não seria mais equilibrada entre o lábio superior e a parte de baixo do nariz, num beicinho cômico do humano. Não ficaria mais dentro do bolso refletindo se suicidava ou não. Infelizmente, muitas de suas conhecidas e amigas puseram fim à vida. “Ato impensado, puro impulso”, lamentava à época quando dos estouros das canetas dentro dos bolsos. Era uma sujeira difícil de ver. Agora, estava leve, mas trancada numa gaveta, esquecida lá no fundo. “Isso dá um pouco de angústia. Na verdade, me angustia muito, não serei hipócrita, não tenho mais idade para isso”, pensava com seu furo. Não tinha mais tampa de cima, nem a rolhinha de baixo. Ela tinha saudade de ser usada, de se sentir útil para si, para alguém. Sempre foi trabalhadora, até altruísta demais. As amigas diziam que ela pensava primeiro nos outros, depois nela. A gaveta era outro momento: chato, nostálgico, arrastado. Só não acreditava que infinito, porque não cria na eternidade. Muitas vezes havia visto canetas próximas e até humanos sendo destruídos sem a mínima explicação. Enquanto era deixada ali, melhor mesmo, dizia para si, era pensar, tentar dar sentido para aquilo tudo. Quanto escreveu, borrou, rodou por aí? Quanto se sentiu importante, sabida, influente – em muitos casos dissimulada – sem ser? “Então era isso, refletir é criar sentido para as coisas. Por isso que quem me usava era tão angustiado, desligado, com a cabeça em todo lugar e, também, em nenhum. Coitados. E eu adorava brincar com eles, falhar bem na hora daquela ideia rápida. Ser sacudida, xingada, me contendo para não me borrar de rir. E quando resolvia ser gaga? Repetia sílabas, palavras a esmo. Ou comia letras. Ou mesmo – me perdoem, sinceramente, me perdoem, brincadeira tem hora – trocava letras, para aqueles empertigados saberem que nem só de ideias se faz um bom texto. A cara deles quando viam uma palavra escrita errada, pondo em xeque seu conhecimento da língua, era impagável. Para se provarem, escreviam tudo de novo, muitas vezes novos textos. E com isso, lá se ia mais e mais tinta. Fui burra, encurtei a vida com essas brincadeiras. Estou aqui vazia, cheia de ideias, mas não consigo materializá-las. Se eu tivesse cheia de tinta, iria conseguir ou continuaria só fazendo coisa para os outros? Provavelmente, só para os outros”, pensou num jorro só a caneta sem tinta. Translúcida, inerte, jogada insepulta no fundo da gaveta. Quem a visse assim, diria que a caneta sem tinta estava morta.

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